Por Evelyn Carvalho
Um novo debate acerca do programa do Governo Federal “Minha Casa, Minha Vida” aborda uma questão tão importante quanto a diminuição do déficit habitacional no Brasil: a qualidade das residências que serão construídas destinadas à população de baixa renda.
Passados anos de recessão, uma herança cultural de procedimentos técnicos, ações políticas e busca por contratações pelo menor preço configuraram um perfil de implantação de empreendimentos residenciais populares que compreende grandes glebas fechadas em condomínios com edificações aglomeradas, instaladas repetidas vezes nos terrenos, sem evidenciar preocupação com a oferta de espaços livres e de uso comum – e tampouco sua inserção no contexto urbano.
O novo pacote habitacional apresenta-se como uma oportunidade para fugir desta concepção, pela sua própria escala. No âmbito federal, a previsão é de que o programa movimente R$ 34 bilhões e promova a construção de 1 milhão de moradias no país. O plano não define diretrizes e parâmetros de projeto arquitetônico e urbanístico, nem formata modelos de contratação e análise de projetos. Entretanto, por ser calcado no incentivo à iniciativa privada, pode promover um impulso nos projetos de arquitetura, visto que não há padronização entre as construções. “As categorias profissionais que atuam diretamente com projetos deverão agir no sentido de enfatizar, esclarecer e educar, sobretudo o poder público, sobre o real valor dos projetos de arquitetura e urbanismo nesta empreitada”, avalia a arquiteta Adriana Blay Levisky, do escritório Levisky Arquitetura.
Para o programa ter êxito, Adriana aposta no fortalecimento do papel do gestor público: “seria desejável aplicar um precioso método de avaliação dos escritórios com potencial de contratação, bem como dos projetos realizados, assegurando qualidade arquitetônica e urbanística às propostas apresentadas, e posteriormente garantindo qualidade de execução, minimização de manutenções futuras e sua integração com redes de infraestrutura”.
Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP), avalia que a melhoria dos projetos apenas se dará se o problema habitacional for encarado por meio de uma ação que vise o longo prazo. Com objetivos imediatos de atender à demanda por imóveis de baixo custo e de movimentar o setor da construção, a qualidade do projeto pode ficar em um segundo plano. “O que tem acontecido com muita frequência é que não se valoriza o projeto, mas as obras, os prazos e os resultados”, alerta Bonduki.
Conforme o professor, o programa se destaca por ter colocado a questão da habitação popular em um plano importante: “Os próprios estudantes darão relevância à questão, fazendo com que haja mais gente formada com a qualificação necessária para este tema”.
Desmistificação
Para o arquiteto Yuri Vital – um dos vencedores na categoria “Habitação de Interesse Social” no Prêmio IAB-SP 2008 com o projeto Box House –, este é o início de uma “democracia da arquitetura”. Vital enfatiza que este é o público que mais necessita de bons projetos. “Todos desejam desfrutar de uma moradia digna, funcional e bela. É importante desmistificar a ideia de que estes aspectos são superficiais e apenas acessíveis para as classes mais abastadas, pois é possível construir com qualidade técnica e padrões estéticos inclusive com baixo custo. Cabe ao arquiteto buscar a beleza na simplicidade e na pureza”, ressalta o profissional.
Simplicidade e pureza estão no projeto de habitação popular que Vital concebeu para a região da Brasilândia, periferia de São Paulo. Entre as soluções, para sustentar uma ambiciosa laje em balanço que confere leveza à fachada das 17 unidades, o arquiteto mesclou alvenaria estrutural à estrutura convencional.
Fernando Forte, do escritório Forte, Gimenes & Marcondes Ferraz Arquitetos, responsável pelo projeto “Habitação Social” em Lins, no interior de São Paulo, vê como benéfica a concorrência que o programa criará neste nicho de mercado. “A competição vai fazer com que os construtores busquem realizar projetos diferenciados, inclusive com soluções sustentáveis”, diz Fernando. O projeto do escritório também recebeu do IAB uma menção honrosa na categoria “Habitação de Interesse Social”.
É consenso que um projeto que preveja ações e estratégias previne o desperdício de materiais e evita o retrabalho, o que viabiliza uma execução mais eficaz da obra ao minimizar tempo e custos. Segundo Yuri Vital, o segredo para uma parceria mais vantajosa com fornecedores é a frequência e o detalhamento do projeto. “Trata-se de uma relação de trocas e de confiança. Quanto mais se utilizar suprimentos de um mesmo fornecedor, mais barato fica o montante final”, acredita.
Do ponto de vista técnico do projeto, os especialistas apontam como fatores fundamentais para o aprimoramento de uma habitação popular a sua flexibilidade, bem como a garantia de condições de segurança, salubridade, higiene, dignidade, inserção urbana e social, boa iluminação, ventilação, acessibilidade, possibilidade de futuras adequações e expansões de forma tecnicamente adequada, segura e respeitosa com o entorno.
O arquiteto Ruy Ohtake afiança que tanto procura atuar em projetos de alto padrão quanto se engajar em ações que promovam a melhoria da qualidade de vida de moradores das regiões periféricas de São Paulo. O profissional, por exemplo, destaca em seu projeto de conjunto habitacional para o bairro de Heliópolis a integração das diferenciadas fachadas e volumetria à paisagem urbana: “O importante é que a tipologia se integre de forma bonita à cidade”, declara Ohtake. Essa integração se dá em termos formais e estéticos e também no oferecimento de serviços e atividades conexas – escolas e postos de trabalho, entre outros.
Guetos urbanos
“De nada adiantará se fazer cumprir a meta de implantação de 1 milhão de unidades se estas compuserem guetos urbanos”, ressalta a arquiteta Adriana Leviski. Junto ao arquiteto Eduardo Martins Ferreira, ela concebeu o projeto – também laureado pelo IAB – do Loteamento Rubens Lara, na cidade paulista de Cubatão. Este trabalho propõe a convivência e usufruto de espaços de lazer, cultura, comércio, serviços, saúde, educação e transporte público.
Ao loteamento, foi destinada uma área de 197.475 m2 para a implantação de um conjunto habitacional. A elaboração do projeto foi norteada pelas questões urbanas, sociais e ambientais do local. A ideia é construir aproximadamente 1.850 unidades habitacionais, garantindo a integração de diversos pequenos condomínios ao contexto urbano já existente e consolidado nas imediações. O sistema viário proposto partiu da interligação de eixos viários existentes, dispondo de hierarquia de vias para transporte público, automóvel, bicicletas e pedestres.
Os condomínios projetados para Cubatão tiveram como premissa um número máximo de unidades, nunca superior a duzentas, visando a facilidade administrativa dos condôminos após sua ocupação. Foram propostas quatro tipologias que, com pequenas variações e tratamento diversificado de fachadas, pretendem oferecer ao transeunte riqueza visual e identidade a cada quadra do loteamento. O intuito é configurar o projeto como um novo bairro e não como um único conjunto habitacional apartado de sua vizinhança. Buscou-se a implantação de quadras institucionais, áreas verdes e de lazer e quadras comerciais, transformando a intervenção em tecido integrado à malha urbana existente, oferecendo atividades e usos mistos junto às áreas residenciais.
O desenho universal foi aplicado às unidades residenciais e também às áreas comuns e públicas. “Um projeto configurado desta forma representa oportunidades reais de qualificação dos espaços privativos e públicos”, diz Adriana.
O projeto de Fernando Forte para Lins segue o mesmo princípio de tipologias diferenciadas. Lá, as casas geminadas têm entre 50 e 80 m2, possuem recuo lateral e uma varanda. Na fachada, o jardim linear cria um espaço semipúblico e um painel a ser personalizado foi colocado em cada residência à disposição dos moradores. As salas se voltam para os fundos, para que a parte externa seja uma extensão da sala. O posicionamento das portas e janelas permite uma ventilação cruzada.
Sustentáveis
A questão ambiental foi fundamental para que Gláucio Gonçalves e Marcos Eduardo da Silva, do EB-A (Espaço Brasileiro de Arquitetura), criassem o Singular, um projeto piloto que prevê a construção de imóveis populares com foco na sustentabilidade. O objetivo dos idealizadores é aliar o aspecto socioambiental a um projeto economicamente viável, tanto para os futuros construtores como para os moradores. “A ideia é buscar mais a questão humana. Fazer um lugar do qual a pessoa tenha orgulho, tenha vontade de voltar para casa após um dia de trabalho, onde ela possa criar os seus filhos”, ressalta Gláucio Gonçalves.
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O arquiteto avalia que a questão ambiental não costuma ser privilegiada pelos programas, mas representa um grande desafio – e uma responsabilidade – para quem atua em um país repleto de recursos naturais como o Brasil. Basta pensar no impacto que a construção de 1 milhão de casas terá sobre o meio ambiente.
Dentro do Singular, para uma área de 50 mil m2 seriam projetados 600 apartamentos. As construções possuem teto verde, o que melhora a qualidade do ar e contribui para a redução do efeito de ilha de calor. Há ainda a utilização de energia solar para o aquecimento dos chuveiros, sistema de reutilização de águas pluviais na manutenção e limpeza dos edifícios, coleta seletiva de lixo, preservação de espécies nativas, acessibilidade, conforto ambiental, além de modulação e racionalização de alvenarias.
Para os profissionais de arquitetura, o programa “Minha Casa, Minha Vida” constitui, acima de tudo, uma chance de atuação para à construção de uma sociedade melhor. “Vejo o arquiteto como planejador do conforto, da segurança e da beleza, sendo esta a nossa forma de atuar pela população. Quanto mais democratizada for a arquitetura, mais visível será a nossa contribuição para a sociedade”, afiança Yuri Vital.